quarta-feira, 6 de julho de 2011

SUMIDOURO

   Ninguém mais ouvia. O piano fechou.
   Mercedes confundiu o vazio com o silêncio, olhou o marido e logo a televisão estava ligada.
   Nem perceberam o soluço que soprou a casa, sequer notaram as fotos esmaecendo.
   No quarto de cima, carunchos invadiram os móveis, milhares.
   No espelho ainda uma imagem preservada.
  Olhava os livros baterem asas, páginas despedaçan-
do pela janela.
  Nas roupas, gatos afiavam as unhas, fatiavam os tecidos, fiapos.
  O cheiro solidificou-se. O farelo se misturou ao redemoinho que já era a serragem do armário.
  Um estalido correu pelos porta-retratos, ranhuras moeram as lembranças.
   No espelho ainda uma imagem contorcida.
  Em cima da escrivaninha a caixa desmontou: brincos e anéis perderam-se, contas espalhadas pelo assoalho.
  Primeiro as pegadas evaporaram dos sapatos, depois entraram as traças.
  Renegada a letra, dos cadernos escorria uma tinta grossa.
   Na parede uma pose emoldurada derreteu.
   No espelho ainda uma imagem desesperada.
   O móbile ao lado da porta continuou revoando em seus fios. Por um tempo, estrelas e corações congelaram e acabou espatifando no chão.
  Dos prêmios, das capas das revistas foram as formigas que deram conta.
   Numa mágoa em fogo, os diários crepitavam. 
  Queimaram junto bilhetes de cinema, papéis de bala, tickets de avião e as cartas.
   No espelho ainda uma imagem magra.
   Linhas escorreram das almofadas, do travesseiro.  
   Espuma tomou conta do ar.
  Implodiram: sombras e rímel, cigarros, cremes, remédios e batons. Fumaça manchando o teto.
   A cama dobrou toda em si mesma, velou-se.
   Os cabelos na escova, os pedaços de unhas foram os primeiros e os últimos a desaparecer, foi tudo no tempo de um instante.
      No espelho ainda uma imagem se arranhava.
    Teclas caíram. Os fios serpentearam por passagens impossíveis enquanto a tela saiu rodando feito dado, partes pulando pelo caminho.
     O chão absorveu a água de um copo meio vazio, o copo foi junto.
    Um boneco e um urso fugiram pela janela que ainda existia.
    Sereias chegaram numa onda, reclamaram suas seringas e partiram.
     No espelho ainda uma imagem borrada.
     As lâmpadas minguaram até a exaustão.
     Ali, agora, há muito ninguém pisava.
    A porta fechou sem alarde e camuflou-se no branco.
    No espelho uma imagem ferida.
   A poeira escapou pelos últimos vestígios da janela.   
     Veloz, disparatada, acompanhando o vaivém das árvores, dos varais.
    Pesaram sobre a cidade, invadiram casas antes amigas, cartórios, estúdios, registros, outdoors, grudaram em lembranças boas e más... sem distinção ressecaram todas, seguindo a mágica daquele desejo.
     No espelho uma imagem impossível,
     Um último livro fechou.
    No espelho já distante, alguém podia morrer em paz.

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