terça-feira, 3 de maio de 2011

A CURA


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      10/08/2003
       
     Horrível, quando o exibiam pelo hospital. Ia arrastado na maca rangente, não suportava o barulho, aqueles gemidos de metal enferrujado, podre. O sacolejo pelos corredores, sua perna e suas feridas vazando pela camisola e pelo lençol áspero, jogado para poupar quem o olhasse.
      Isso, é claro, era a pior parte, as caras arregaladas dos passantes ou pacientes ou enfermeiros ou faxineiras, o que importa? Sempre tinham alguma cara para lhe dar, e era sempre insuportável. Em todos os seus tipos, as de pena, as de nojo, as de falsa indiferença, as de simpatia e de solidariedade, só lhe alegrava um pouco as de medo.    
     Não, não era realmente uma alegria, era mais uma crueldade. Olhava firme o assustado e pensava com esse prazer contido: é isso, é assim mesmo que vai ser.
      Depois, era o exame, o que nunca é bom, a volta pelos mesmos corredores, os tropeços das rodinhas, o elevador, a multidão da visita e tudo para o quarto abafado.
      Seu nome era João Miraldo Ferreira dos Santos, sempre fora o João Miraldo, mas ali era apenas “seu” João, não importava quantas vezes corrigisse “é João Miraldo” as enfermeiras tinham-no rebatizado.
      Passava o dia engolindo aquele intimismo forçado. Na maioria das vezes, vinha da cama da direita, uma senhora gorda, dona Elenice, que se sentia um tanto entediada, só com seu tricô, e um pouco carente, só com suas doenças, insistia em chamar-lhe a atenção. Às respostas curtas e secas não desanimava, cinquenta anos de casamento tornaram-na imune. Falava das enfermeiras, do filho, das pernas, das enfermeiras, das varizes, do filho, das pernas, falava...
      O outro companheiro de quarto, o da esquerda, também lhe causava profundos desgostos: primeiro, seu mal era pulmonar, o que significava que João Miraldo agora passava os dias entre escarros, acessos de tosse e chiados; segundo: o homem era banguela, não tinha os dois dentes da frente, isso João Miraldo sabia, pois toda vez que tentava se distrair com a janela, aquele homem infeliz lhe abria um sorriso capenga que estragava toda a vista. Uma vergonha, suspirava, ele era muito mais velho do que o banguela e tinha os dentes em ordem, aquilo era relaxo, isso é o que era.
      Nos horários de visita, o quarto se enchia com os parentes da Dona Elenice, o filho, realmente, nunca apareceu, mas em compensação a nora trazia um bando de crianças, todas muito mal educadas.
      A visita da esquerda lhe era bem mais tolerável, apenas uma senhora, com ar humilde e silenciosa. Devia bater de idade com o marido, e tinha cabelos muito brancos que contrastavam com sua pele escura. Mas, para a aprovação de João Miraldo, levava uma boca completa, como tinha que ser.
      No fim do dia Arlete entrava, a faxineira lhe era um desagrado maior do que Dona Elenice com todos os netos melequentos. Não tinha a menor consideração com os ocupantes do quarto, era malcriada, nem lhes olhava na cara e fingia que não escutava enquanto João Miraldo falava. Uma menina nova, mas já trazia as unhas como garras, pintadas, cada dia com uma cor, uma mais descabida do que a outra. Além disso, ia desafinando uma canção barata enquanto arrastava as macas, sem o menor cuidado, e respondia com desdém às queixas doloridas dos pacientes.
      Fazia tempo que João Miraldo estava ali, já tinha tido muitos companheiros de quarto, todos, de um jeito ou de outro, acabavam indo, mas ele ainda ficava. O Dr. fazia piada da duração da sua estadia, mas ele sabia que, com seu sapato lustroso, o homem estava impressionado por ele ter durado mais uma semana; triste esse tempo quando você surpreende por ainda estar vivo.
      Seu mal era tanta coisa junta que velhice respondia melhor. Chegou a perguntar quanto tempo ainda lhe restava, num rompante de sentimentalismo pouco seu. A resposta: “Nunca se sabe, mas ninguém é eterno, não é seu João?”. Os sapatos brilhosos saíram martelando o chão, como quem não acredita muito nessas coisas. João Miraldo encarou a pressa daqueles passos tomado por qualquer coisa entre a humilhação e o ódio e não era a inveja disfarçada do despeito, era muito mais do que isso.
      Em todo caso, não gastava muito tempo pensando, piorava seu estado, só que seus dias eram tão ralos que o passado vinha, como para lhe dar alguma grossura. Então: Era João Miraldo Ferreira dos Santos, filho de Olassir Oliveira dos Santos e Tereza Ferreira; Era o João Miraldo da rua do Treze, amigo do Otávio e do Waldir; Era o João Miraldo coroinha da paróquia do Padre Siqueira; Era o João Miraldo namorado da Olívia; Era João Miraldo torneiro mecânico; Era João Miraldo marido da Olívia e pai dos meninos; Era João Miraldo funcionário do mês; Era João Miraldo, homem da Rosa; Era João Miraldo “Aqui, seu João, seus comprimidos”.

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      14/09/2003

     Não era bom quando o levavam do quarto, pudera que não o fizessem. Tinha dias em que o cansaço era tanto que vencia sua ranhetice, um desânimo tão profundo que nem para reclamações tinha fôlego, ficava parado, só a televisãozinha da Dona Elenice, com a boca quase aberta, os olhos ardendo por falta de pálpebra, porque até nisso economizava.
      Fora do quarto era tudo muito. Um zunido insistente que ficava lhe exigindo. Era um balanço na maca, era uma friagem a lhe marcar que havia espera. Era uma queda na mesa gelada, um ronronar seco de máquina a lhe lembrar que tinha corpo.
      Um falatório oco de médicos, umas perguntas duras que vincavam, de novo, as doenças no seu rosto de gelatina. Suspirava então, e queria a moleza da tela.
     Recebeu sacolejando as lâmpadas compridas, uma, outra, piscaram seus olhos; a parede, uma mulher, outra, um choro, um gemido. Foi então que aconteceu: uma maca, outro doente, o rosto tão perto que sentiu seu hálito novo, seu sopro de pêssego bichado, foi então.
      Já estava no quarto e ainda estremecia, o corpo de velho engastado, as juntas ressecadas pela secura de todos os dias, movia-se. Os dedos, os olhos, o peito derrubando barro àquela brisa que lhe animava.
      Como se despido de todo pelo e toda pele, pulsava, e foi tudo como dele. Olhou pela janela e foi quente e foi dourado; um sorriso aberto, desdentado e respirou no peito preto, virou e carregou um peito farto. A porta abriu, teve as unhas vermelhas, cantarolou uma mágoa bastarda.
      O médico veio, experimentou sapatos espelhados e se ergueu em ombros largos, firmes, ombro escudo, ombro muralha.
Provou qualquer coisa descabida, uma palavra agridoce, escorrendo invisível pelas ranhuras daquele muro. Com o esteto pesando no pescoço, ela parecia tão fora de lugar, a estranhou no peito estufado, mas quando foi sol e preto e gorda e moça e foi então, enfim foi,
      Sorriu, era pena.

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