sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

CADA QUAL COM O SEU



            Era tarde enuviada, nem quente, nem fria. O homem vinha e vinha como sempre bufando, trilhando seus passos marcados. Já anoitecia. Mal olhava as árvores que lhe faziam vigília, nem escutava as considerações dos pássaros que lhe rondavam.
            Outra. Foi tarde ensolarada. Mais quente do que fria. O homem passava como e como sempre passava, seguindo bufando seus passos treinados. Mal olhava as árvores que lhe faziam companhia, nem se dava com as pombas: arremedos de pássaros. 
            Era uma tarde ventada. Nem quente, nem fria. Caiu. Não se deu com as árvores, não se deu com as pombas. Foi dar-se com o buraco.
            Por tempo ali ficou, pois não havia quem de dentro o tirasse. No primórdio o que havia era esperança, os que lhe conheciam do caminho – esteira de montagem – passavam em suas valas e gritavam incentivos. Mas a distância entre o fundo do buraco e as trilhas vincadas era grande; pararam. Outros, mais próximos, iam lhe jogando algumas coisas de precisão, bem intencionados, construíam escadas de corda para que se levantasse; só que era ele todo estilhaçamento.
            Além do mais, o fundo é tão buraco e tão parado... Quer pior, os pés perderam o passo – seu passo – tão bem treinado? E como fica o corpo, sem o ritmo da marcha? Cai desequilibrado.
            Vão passando tardes enuviadas, bem mais frias do que quentes. Não repara nas cores da terra, nem se dá com a tosqueira da minhoca. Vai de novo se acostumando, de bicho de marcha, passa a bicho de terra, o que lhe jogam é pouco, mas basta. Nem percebe vai se fazendo em mudança, quando vê já nem olha: Olhos de toupeira.
            Mas, como o que se fez se desfaz, o contrário vale bem; e o buraco foi enchendo, um tanto do que jogavam outro tanto da terra    que o homem-toupeira às vezes derrubava – como não deixa de ser – ainda haviam tardes mais quentes do que frias.
            No fim já estava quase fora, era posto que sua trilha já não tinha, mas quem dela se lembrava? Alguns diziam:
            – Falta pouco, loguinho sai do buraco.
            E respiravam mais leves pressentindo o não peso das precisões do homem. Coitados, pobres garimpeiros de verdade. Sua vista vai só para o luminoso! Disseram:
            – Finalmente saiu do buraco!
            E fecharam os olhos ao que o homem não conseguiu: foi tirar o buraco de dentro dele.












terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

MARTIN-PESCADOR


        
            Homem de bem Martin, pescador desde sempre.
            A indústria veio e reclamou quase tudo que era de mar: os barcos bons, os peixes grandes, até as gaivotas foram lhe acompanhar, mas ele não. Manhã cedinho, quando o sol se avizinhava encontrava cada vez menos couro de homem para lhe saudar. Quase só o de Martin, esse continuava: arrasta o barco, pega o remo, quebra onda, joga a rede, puxa a rede, pega nada, pega pouco, pega nada, pega remo, puxa o barco, nunca para... num nunca para.
            A mulher dizia que aquilo não era vida, preso aos desmandos das águas, dos tempos, das luas. A labutar o dia todo, vertendo braço em remo e, para quê? Para quase nada! Para uma agonia de peixe pequeno, de peixe barato. Devia era ele seguir com os outros, trabalhar na Indústria, ter dinheiro certo no fim do mês: “A maré mudou, Martin, e barco pequeno não lhe pode aguentar.”
            Martin crispado feito marisco, enchia a boca com o pirão – que era o tudo que tinha – e deixava: no dia seguinte havia de ter peixe bom para lhe calar. A mulher que era só agonia, deitava a máquina a coser que só o que vinha do marido não era o tanto de comer, olhava o menino no lado – sofria – o que é que lhe podia esperar?
            Como sempre, todo dia amanhecia precedido de Martin, a mulher olhava da janela, e sentia culpa do seu querer: o homem era todo emaranhado à rede, areia, espuma e madeira... Sentia culpa do seu culpar. Culpa e desespero, cansada da lida para nada, da lida inútil, sem recompensa. Mas, olhando-o ali, como exigir? Como sequer querer que Martin se desvencilhasse do que de tudo era?
            Olhou o mar salgada: “Sovina”. E foi botar o filho para escola, e foi cuidar da roupa, e foi vender toalhinhas para os turistas: todas bordadas com barquinhos, peixinhos e conchas. Apesar de que, dessas, ela ainda gostava: eram mais velhas do que toda aquela miséria. 
            Martin? Esse continuava: arrasta o barco, pega o remo, quebra onda, joga a rede, puxa a rede, pega nada, pega pouco, pega nada, pega remo, puxa o barco...
            Traz uns peixes poucos, vende, fica com um mais pouco ainda. Passa no bar do compadre. Pede uma para esquentar, que o vento está forte e frio, pede outra para aguentar, que o mar está bravio e amanhã não recebe barco – pelo menos não o seu, pequeno, a vela e a remo.
                O estômago reclama, reclama à mandioca, pede dela a farinha que é o que o bolso ajuíza: “Me vê aí um quilo de farinha de mandioca, Mané? Depois a Marta vem acertar...” O compadre baixa o olho, as coisas estão ruins para todos... Martin paga a pinga fingindo de enfezado, deixa o resto do nada que tinha para diminuir um pouco a pendência, enfia o chapéu na cabeça e sai chutando areia, muito calado na vergonha.
            Marta chega em casa, o pé ardendo, a trouxa dos panos pesando. Grita o menino para vir para dentro que o vento arranha e a chuva logo vem. Para à porta – aberta – desacreditada: a areia invadira a casa. Ri num quase endoidecer, numa acusação sem quem: “Querem mesmo nos enterrar aqui!” O menino entra molhado tornando em lama tudo. Não adianta se sentar, passa a mão na vassoura, no menino, em uma panela, nos ovos, no mexido.
            O marido chega carrancudo, ela – de cansada das respostas – faz tempo não lhe pergunta nada; senta à mesa cheirando o ovo. Dói o estômago, e dói mais: e se ela não tivesse trazido a comida?
            “Olha que hoje chove, o vento parece que leva a casa”, põe o prato na frente do marido: “Você sai com o barco amanhã?” Ele diz que não, ela diz que é bom, assim podem enfeitá-lo para a procissão de São Pedro: “Esse ano parece que vai ser grande, vem gente de tudo que é lado, arrumaram até umas caixas de som pro barco do padre... É bom, quem sabe com reza as coisas não melhoram?”, sorri sem crença ou companhia.
            A chuva cai forte, cai dentro. Em cima da cama do menino, arrasta a cama, põe a lata, outra na cozinha e mais uma no banheiro. Marta que também tem medo de relâmpago, consola o pequeno assustado, Martin fica cismando calado no toc, toc, toc toc, toc das goteiras.
            No dia da procissão não chove mais, coisa de Santo. Tem é um povo todo, uma gente que é de fora, numa animação danada. Marta termina de arrumar o barco, umas moças pedem para tirar foto dela junto das bandeirinhas coloridas penduradas na proa, Martin se avexa: “Isso aqui não é brincadeira, não é coisa que carece de foto!” A mulher pouco liga: “Que é isso homem? Está com ciúme de quem? De mim ou do barco?” As moças riem, ele sai.
            Chega no bar do compadre – que é o único lugar que se tem para ir – está lotado, se embrenha até alcançar o balcão, pede uma. Vem passeando pela praia lotada, passando pelos barcos aprumados, todos seus ex- companheiros... Nenhum deles continua na pesca, tinham todos se debandado pro lado de lá...   
            A festa é cada vez mais animada, tem música alta, tem muita comida, tem tanta gente que a missa tem que ser do lado de fora da Igreja. Marta e o marido estão, bem longe, mal se escutam as palavras do padre. Assim, fora das paredes, sem a luz dos vitrais, nem parece missa e, a julgar pelos outros, nem carecia se calar. Martin se impacienta, com aquele cochicho todo a se meter na frente de sua fé já tão esfarrapada.
            Os barcos saem em procissão, no seu, leva as meninas da foto com quem Marta tinha feito um arranjo. Quando toma conhecimento, já está tão desalentado com aquele dia santo, que não tem palavras, pega no remo acostumado e vai. Vai olhando para a mulher com ódio, olhando para as meninas com ódio, para sua animação, seus gritinhos nervosos, como se nunca tivessem visto mar antes, nem mar, nem mulher com lenço, nem menino descalço, nem homem de chapéu e remo.
            Aquela falação se mete, de novo, entre ele e a voz aumentada do padre, e a raiva entre ele e qualquer que fosse o Santo, ou Deus a quem queria pedir. E pedido assim, de tanta precisão, é coisa difícil de se fazer. Sabe desde novo, sua mãe lho ensinou: primoroso, mesmo, é a crença firme, posta, se não vem tudo invertido: santo se zanga à toa, se ofende com desconfianças e, principalmente, com acusações. “Ora, que tudo agora é que se dana mesmo”, esbraveja num murmúrio próprio de quem não é chegado em palavras.
            A mulher vai meio arrependida. Que aquele comércio não é direito em dia sagrado, não é difícil de adivinhar; e o marido, com a cara que leva, lhe põe até um tantinho de medo. Mas o pior é que vê a imagem do Santo, pequenina, lá de longe lhe encarando e – deve é estar ficando abobada – porque parece que São Pedro lhe dá a mesma cara de Martin.
            Baixa os olhos vergonhados... Só, que levanta logo. Martin que não venha reclamar que ela arranjou um dinheiro fácil, e o Santo? Bem, é pecado responder.
            Mal o barco vinca na areia, o homem já some no meio do povo todo. Marta ainda quer lhe falar, mas fica, a testa pesando, vai é receber o combinado com as meninas. O que lhe dão enfia logo no bolso e a coisa fica ali com um incomodozinho que é nada.
            Findada a parte do Santo, a festa corre mais que nunca. O que tinha servido de altar é agora palco e a imagem de São Pedro foi empurrada para um cantinho, com uns fios passando na frente. Vem é uma música alta, umas mulheres alegres, uns homens já muito bebidos, todo tempo alguém lhe esbarra. Martin, homem acostumado às imensidões se perde todo na multidão.
            Parece que ele é o de fora ali, justo ele que crescera naquela areia, e antes o pai, e antes o avô? e, antes, e antes... Mas o que pode, sair dali? Não é então dia de São Pedro? Então não vem desde de menino saudar o Santo, não é desde pescador que o deve?
            O calor lhe castiga a cabeça, e o som, a gente, o Santo e a moça de saia curta cantando. Um lhe cumprimenta, é feito brisa fria, vai junto com o tal, tenta se aprumar, leva uma cara que deve ser a de quem tem sede, porque toda hora alguém lhe dá do que tomar. Vai-se ficando.
            Toma três, toma quatro, o homem de canto é um desajuste só, mas ninguém se dá e ele vai-se ficando. Vai-se num tempo de criança, no tempo de peixe, ficando com um escorrer molhado do tempo de pai e de mãe, num escorrer salgado do tempo de peito estufado, de mesa farta. É tanta a falta, que o homem quer o Santo, que homem quer Deus e reza, num amargor e desespero sem tamanho, muito próximo do amor.
            Olha para o Santo, e se encrespa todo, aquilo não é direito! Odeia aquela farra, os risos, a cachaça, aquilo não é direito. O santo, no dia que é dele, ali no palco, esquecido, encolhido no meio de tanta pouca vergonha. Não é para menos que as coisas andam, como andam, só pode ser, onde já se viu faltar peixe no mar? “Tudo culpa dessa gente sem respeito!”
            Vai feito fúria, chapéu enfiado na cabeça, vai feito onda, abrindo caminho, passa pelo padre, grita-lhe baixo que aquilo não é direito, que o senhor não pode permitir um disparate de festa daquelas: “O Santo tem que voltar para a Igreja!”
            O bom homem é complacente com os bêbados, sorri-lhe escutando pouco, mas o vê sair desembalado num tropeço firme em direção ao palco e pressente o perigo, corre então a ter com ele.
            Martin sobe e desce agarrado, segurando como pode a base que sustenta São Pedro. Outros moços se assustam, “O que é que está fazendo com o Santo, Martin?”. Resposta nenhuma, “Passa para cá a imagem, homem”.
            “O que é Joaquim, está se metendo no quê? Não abandonou a praia não, não largou mão de ser pescador?! Pois então saia do meu caminho que este Santo aqui não lhe diz mais respeito!”
            “Martin, meu filho, devolve o Santo”, de mão estendida, suando na batina, o padre ainda tenta resgatá-lo. Mas Joaquim vai primeiro, ofendido nos seus orgulhos. E vai-se tudo tão rápido, os dois tão regados, transbordando tanta paixão que o Santo transborda do seu lugar também, e vai se acabar, se espatifar todo no chão de areia.
            Parece que não tem mais música, pare que não tem mais gente. Martin num desespero de assassino quer ajoelhar nos cacos, acariciar o corpo partido, mas com que direito? O padre que é mesmo padre cheio de piedade tenta lhe falar, diz que aquilo era só imagem que o Santo ainda é o Santo... Só que o homem não tem mais ouvidos, é só ele todo vista; olha, olha: o santo desfeito no chão.        
            Condenado, fantasma de homem pela praia se cuidando de não olhar para o mar, acaba topando com a casa, entra. A mulher escuta, levanta ouriçada, pronta para lhe cobrar o sono perdido, mas o trapo que encontra na cozinha é tão pouco que lhe desarma.
            Oferece um café que é o que pode, “Olhe Martin, aqui não dá mais para nós”, continua num discurso cheio de cuidados: “... faz tempo que estou pra lhe falar, eu sei que você não aguenta nem pensar em sair daqui, mas não dá mais homem, menos dia um  morri de fome nessa casa. E o menino, o que é que vai ser? Tem que se pensar no menino, filho é pra gente se sacrificar”  
            “O que é que você quer fazer Marta?” Quer é ir embora para a cidade, para a casa da irmã, quer trabalhar com ela nas marmitas, quer é por o menino numa escola decente, “Eles tão bem de vida Martin, e nem é favor, minha irmã precisa de ajuda no negócio...” Silêncio.
            “Eu já falei com meu cunhado... A gente pode ir, é só você arrumar um emprego          – porque três bocas são muitas – mas isso vai ser fácil, ele arranja trabalho para você lá na fábrica, parece que tão precisando de gente...” Nervoso, nervoso igual de quem confessa uma traição: “Olha homem, para quem vive a vida lutando com esse mar bravo, trabalhar em fábrica vai ser fácil! Vai ser bom pra nós...”
            Levanta devagar, molha a cara, vai pro quarto. Ela fica sem pensar, recuperando o fôlego e abrandando o peito. Volta trocado, “Para onde você vai, Martin?” Vai pro mar, que o dia já desponta, “Mas como, se não dormiu nada, vai sair assim? E tudo que eu falei, homem?”
            “Eu ouvi, Marta... Você lembra como era? Antes?” Ela toda bonita, toda redonda do menino, cheia de vontades. “Eu te dava tudo, lembra? Era só pedir: peixe comprido, peixe achatado, camarão, marisco, era só escolher que eu puxava.”
            Guarda uma ardência nos olhos, seu marido não é de tantas palavras, “Foi-se homem...” olha ele indo, parando: “Avisa lá sua irmã que nós vamos”. Era para ficar feliz, passa os olhos pela casa, como se não lhe pertencesse mais, e sofre.
            Martin? Esse continuava: arrasta o barco, pega o remo, quebra onda, joga a rede, puxa a rede, pega nada e, rema, rema... mais longe; joga a rede, pega nada; rema, rema, rema, mais  longe; até a madeira estalar, até o braço ferver, rema, rema, rema; joga, pega nada, pega pouco, pega nada, rema: até o horizonte chegar, até o barco romper; joga, pega nada, peixe nem fé... Solta o remo agora, deixa o barco agora, que não sobrou mais nada para lhe prender, desce à onda agora, que o mar é tão grande que logo vai lhe esquecer.

             
              
  

PEQUENA FÁBULA OU DICOTOMIA


   
             Um homem corre. Às suas costas, fogo e sangue, corre nauseado pelo cheiro de carne putrefata, os olhos escorrendo pelos que perdeu. À sua frente uma pequena ponte, fraca, decrépita, reúne todas as forças e atravessa, com a pressa seu peso é pluma, a madeira range, mas ele já chegou.
            Respira aliviado, por extenuantes instantes ajoelha, reverencia a nova margem. Leva a fronte à terra bendita, sua cabeça cansada refugia-se no consolo de todo o mal ter ficado para trás. Vive assim um estado glorioso, caminha confiante no novo solo!
            Passa pelos rios, prova dos frutos, deita os olhos nos animais e já os ama! Ama-os profundamente e, como não amá-los? Ali a criança de peito podia brincar sobre a toca da naja!
            Adota-os como seus e, como bom pai, mima-os e os desculpa. Ignora suas pequenas falhas, cerra os olhos para as marcas rasgadas nas árvores. Justifica os dentes manchados do lobo, não é a necessidade que o leva a matar? Ignora o prazer com que cerca a vítima, a lassidão com que a mata, a volúpia com que lambe às garras o sangue.
            E segue neste fechar de olhos, afasta-se dos grandes, toma para si a educação dos filhotes. Em sua caverna, cuida de transmitir a todos as maravilhas daquele lugar, conta-lhes sobre os terrores do outro lado, incita-os a rezar às belezas de sua margem e, quando os sons da caça perturbam o sereno murmúrio das orações, o velho mestre lhes ensina a cantar.
            Eles cantam e cantam cada vez mais alto enquanto os gritos da batalha aumentam e de repente já não cantam, mas gritam! E entre eles é o mestre o mais determinado, eleva-se; os jovens engasgam, tossem e, por fim, só escutam, a rouquidão domina o homem e ele se cala enraivecido. Dirige-se decidido para fora da caverna prometendo conversar com os adultos e restaurar o piedoso silêncio!
            Estanca à porta, os olhos arregalados. Inala fumaça, lacrimeja.
            Por toda parte há corpos mutilados e semidecompostos, alguns sequer foram devorados, de outros apenas pequenos pedaços de carne foram petiscados.
            Vira uma curva e a náusea se liquidifica, limpando os lábios ainda não consegue levantar os olhos para as centenas de pequenos animais empalados – a quais espíritos servem esses tótens macabros? – Seus rostos retorcidos, guardando a última expressão, toda dor, todo o pavor. Reconhece alguns e, com que desespero os encara? Há até pequenos, há até alunos seus.
            Ouve gritos e lágrimas e gargalhadas por toda parte. Vê, no alto de um monte, um grupo cercar uma coelha e seus filhotes, se divertem enquanto a mãe implora, matam lentamente, dolorosamente, cada um dos filhotes, brincam com ela até se fartar e a deixam moribunda, provavelmente levará ainda alguns dias para, finalmente, morrer.
            O velho homem assiste de longe, tenta gritar, chamá-los à razão, mas sua rouquidão impede que o escutem, tenta vencer a enorme distância que os separam, mas quando se aproxima está tudo acabado. Não é capaz de falar com a coelha, quando essa lhe ergue os olhos, não consegue encará-los, sai tropeçando atrás dos algozes, aqueles com quem costumava dividir o leito, amar como filhos...
            Inútil descrever todos os horrores que o acompanharam pelo caminho e seu encontro com os grandes. Basta dizer que, primeiro, riram dele, depois se irritaram e, por fim, levaram-no pelos calabouços, apresentaram-lhe grandes máquinas de dor, explicaram minuciosamente, cientificamente, seu funcionamento, mostraram-lhe até pequenos animais torturados, pequenos animais que, como ele, pareciam estar insatisfeitos com a boa nova ordem das coisas.
            O homem saiu de lá aos pedaços, não acreditava que o paraíso que construiu para se ver livre do terror tinha se tornado ainda mais cruel. Correu para longe dele, em direção à margem do velho abismo que o ligava à sua antiga morada. Correu disposto a renegar, para sempre, as duas margens!
            Chegou à borda, encarou a ponte, antiga ruína, mas pareceu-lhe tão confortável! Sentou-se bem no meio, sentindo a calma, aos poucos, dominá-lo...
            Porém, durou muito pouco, a ponte decrépita começou a ranger, o homem paralisado, ali como estava, abriu os braços e se agarrou às cordas enquanto as tábuas que o sustentavam voavam de seus pés para dentro do abismo.
            Ficou assim tencionado, por sorte, suspenso: uma mão segura à corda presa à margem direita, a outra à esquerda. Qual soltar? Se escolhesse uma poderia escalar até a terra firme, mas como? Não havia para sempre renegado aos extremos sobre o abismo? Não aprendera a duras penas os horrores de ambas as margens?
            Imóvel, sem pensamentos, sem voz, amargurou seu mundo. Império dos pares!
            Mas, que não confunda o leitor as suas lágrimas! Não chorava por uma mudança em uma ou noutra margem – elas não eram sempre as mesmas – e muito menos por uma melhora de seus povos – isso já não estava desacreditado?– Tão pouco ansiava por uma ponte, afinal como viver em uma? Esse impraticável meio termo.
            Não. O que lhe banhava as faces, ele nem o podia dizer, nem o podia saber... Distinção inocente, no fim, não é mesmo um o outro o outro o um?  
            Queria o impossível, desejava o pobre homem livrar-se da terrível dualidade das margens sem ter que abraçar o absurdo: enfrentar o exílio absoluto do abismo.