quarta-feira, 23 de novembro de 2011

LAURA



***


MARÇO, QUINTA-FEIRA

Apesar de tudo é fácil o encontrar. Um, no máximo dois lugares, e lá está o André. Vai ver faz de propósito. As suas, transgressões, suas... foram, são sempre bem amparadas.
Ana foi para casa de uma amiga, histérica. Engraçado os chiliques dela, considerando quantas vezes eu a encontrei caída também.
Não entendo como não foi você que largou dela, pelo amor de Deus, a mulher conhece no máximo vinte palavras e usa cinco. Vai saber se dessa vez é para valer...
Você conseguiu irmão. Será que sabe? Tem uma folha inteira no jornal falando do seu livro. Desde segunda que não param de ligar lá em casa. É sempre “esplêndido”, deve ser o adjetivo da moda. Queria ver sua cara ouvindo, detestaria. Mas, é bom mesmo assim.
E o que me disse é estúpido. Para variar, distorceu tudo, não tinha nada a ver comfalso moralismoou, como é que era? Eu o querer submeter a umanormalidade hipócrita, burguesa. Quanta eloquência... agora, saúde não é caretice e nem tranquilidade é sinônimo de castração! Inclusive tem me faltado bastante. Quatro horas da manhã e eu num semáforo no centro de São Paulo, vai ser um dia ótimo...
O pior é que se você não estivesse semiconsciente, babando no meu banco, ia me revelar a beleza disso, “a cidade travestida em madrugada, seu ar de recém-liberta”, na verdade falaria algo melhor...
Foi sempre assim. Você sempre foi poeta. E eu correndo para tentar ver o mundo que você via. A quantos espaços fantásticos não nos levou? Fez até o paraíso da nossa casa habitável.
Depois nossos lugares viraram palavras e livros, som. E deixou de ser bonitinho o menino com a cabeça na lua. Ninguém mais sabia onde encontrá-lo e gritavam. Demorei para notar que tinha virado o fosso do seu castelo, todo tempo à sua volta, protegendo seus domínios. Até hoje você não percebeu.
E se como me acusa, vivo em suas conquistas, gozo nas suas aventuras, também é com seus desesperos que me afundo! Porque no fim, um é o outro e é tudo a mesma coisa, inseparável o que o destrói e o que o anima. É tanto... você transborda, afoga tudo ao redor. Foi sempre assim.
-- Acorda André. Chegamos.
Se fosse você na minha pele agora, já tinha batido a cabeça no volante, e berraria tudo isso para mim. Mas eu não tenho essa desmedida, meus limites são estreitos, bem definidos.
 -- Levanta, merda André, vai ficar caído na calçada?
Devia lhe deixar aí, com a cara na sarjeta, aproveitando toda sua intensidade.
Melhor agora, bebendo a limpeza de alguma esquina, essa água suja entrando na sua boca, pelo seu nariz, sem reagir.
É até poético, lhe assistir a se afogar, no meio da rua.
--Laura? Me ajuda aqui.
***

MARÇO, SEXTA-FEIRA

-- Ela não vai voltar, vai?
-- Como é que eu vou saber
-- Eu queria ter conseguido.
-- Conseguido o quê?
-- Fazer funcionar...
-- Ah, olha aqui André, a Ana não era para você, nunca foi. Não sei o que aconteceu, mas ela de toda porra louca de repente quis encenar comercial de margarina.
-- Laura...
-- É verdade, não que eu gostasse dela doida, mas tinha que ir para o outro extremo, oito ou oitenta?
-- Ela só queria um pouco mais de tranquilidade, não é isso que você vive me receitando também?
-- Qual é, André, ela queria ter filho, brincar de casinha. Mandar você largar mão de tudo e arrumar um emprego decente? Não está certo, ninguém tem o direito de pedir uma coisa dessas, eu não perdoo.
-- Não era só isso, é todo resto. Você gosta de ficar me caçando de madrugada?
-- Come alguma coisa, é ressaca moral, à tarde melhora.
-- Não estou brincando Laura, se eu pudesse eu não era assim se pudesse eu rasgava essa pele e pegava outra!
-- Que merda é essa André? Prefiro te ver esperneando contra a “moral burguesa”.
-- Talvez você estivesse certa sobre isso, deixar de ser esse estorvo fazer qualquer coisa útil. Nem eu aguento mais as minhas crises, minhas angústias é sempre igual e de novo e igual e de novo.
-- Puta que pariu, não foi o que eu disse. Vai concordar com essas besteiras agora? Queria ser como, viver como? Do mesmo jeitinho de todo mundo, medíocre. Você não se dá conta? As coisas que faz, que escreve... Não leu o jornal não?
-- Foda-se essa merda! Olha para mim Laura, olha o que sobrou! Não aguento, não quero mais pensar. Você acha lindo, mas sabe como é, não pertencer a espaço nenhum? Eu não quero mais ter que inventar um lugar, quero estar. Não consigo.
--
-- Eu quero tanto que quase me mato. Está ficando pior, depois dessa merda de concurso, dessas porras desses jornais, ninguém entendeu nada. E falam e falam, era melhor que me xingassem!
-- Danem-se eles André.
-- Danem-se nada! Sento e estão lá, bafejando na minha nuca! Para mim não escrevo mais. Tudo fica uma bosta e tem sempre uma multidão esperando.
-- Falei com a mãe.
--
-- Quando?
-- Acho que vou passar uns tempos lá.
-- Como assim?
-- Sair do meio de tudo isso, aqui não dá mais... nem vejo já saí, bebi me enfiei em toda merda que apareceu. Você não tem noção das coisas que eu ando fazendo. 
-- Incrível, como tudo é sempre sobre você. Quis, viemos. Agora quer voltar?
-- Vamos Laura, você nem gosta mesmo daqui; e eu preciso da sua retaguarda.
-- Não é assim tão simples.
-- Por que não? Pode continuar fazendo as traduções lá! Você já tem trabalho arranjado para o resto da vida! Eu sei que sente falta...
-- Sabe mesmo? Foi a Ana que te mandou fazer isso.
-- Laura, se eu continuar assim, na próxima vez você vai rebocar o meu cadáver.

***
JULHO, DOMINGO
O cheiro da casa. Sempre o mesmo.
Aquela luz torta ainda entrava, culpa da porta quadriculada, com vidros crespos; talvez.
As roupas sujas deixou nos tacos soltos aos pés do sofá, detestava hospitais. Foi seguindo o corrimão, que viu diminuir com o passar do tempo, até a sala de jantar.
A casa toda diminuíra, mas os olhos ainda eram imensos. Um bisavô fora pintor, todo cômodo nobre era coberto com quadros. Suas figuras eram altas, fortes, um olhar sempre bravio, mesmo o da mulher chorando do rochedo; todos feitos às ondas revoltas, punha sempre mar em suas molduras.
O terreno era grande, sabe-se lá porque construiu a casa bem na parte do barranco. Ficou daquele jeito, cheia de desníveis, de recôncavos, esquinas... Era também arquiteto, o avô de minha mãe, chegou a ser consagrado doutor por “honoris causa” na capital. Além de compositor, escultor, músico... O “Maestro”, como o chamavam, fez muitas coisas. Na cidade, a família ainda gozava dos prestígios que deu ao seu nome.
Não. Só minha mãe fingia que era. Os descendentes do grande Maestro já o tinham suplantado na memória do povo, seus feitos de, bem menos nobres, eram bem mais comentáveis.
A mesa de madeira pesada, dez lugares, uma passadeira de trico, um vaso de flores de plástico. A televisão, beirando o século passado, o tapete liso de tão puído.
É tarde, as mesmas sombras nos corredores longos, o rangido dos cupins nas escadas. Criança, nunca conseguiu atravessá-los sem desatar a correr. Agora, só controla a ânsia: como todo o resto, os fantasmas permanecem. Ainda sobe sem olhar para baixo e abre depressa o quarto do irmão.
Até deixar a casa dormiu lá, depois que a mãe desistiu de prendê-la no próprio quarto. Ali estavam sua cama, o guarda-roupa, que fora da avó, todos seus resquícios até os dezenove anos e os restos do André. Deitou virada para a luz que encontrava da janela.
Não passou muito, acordou com grito seu, virou para a cama vazia do irmão.
O vento quente era o melhor que tinha naquela casa, quando entrava de um susto pelas cortinas... Laura abriu os olhos, encarou o teto da infância, teve nojo do teto da infância.
Quatro meses. Por ela nunca teriam voltado.
Claro que não podia ser bom para ninguém, muito menos para ele...
-- Laura, você não vai levantar? Não sei que mania é essa de trancar a porta, só tem nós duas aqui.
 Odiosa. Minha mãe.
Virou por mais uma hora na cama, quando saiu a panela de pressão fazia alarde, a sala fedia a carne. Levou o café para o quintal, quase baldio, roseiras crescendo no chão batido, enorme. Quatro meses. Ele a enganou. Tudo uma armadilha, a convenceu a voltar dizendo que queria melhorar, nada disso. sabia que ia fazer? Ela não conseguia se decidir, ele era muito impulsivo. 
     -- Você vai que horas para o hospital? O médico quer falar com a gente antes de dar alta.
     -- Eu sei mãe.
     -- Então?
     -- O quê?
     -- Que horas você vai? Não vejo a hora dele sair daquele lugar.
     -- Não sei.
    -- Qual seu problema Laura? Seu irmão precisa de ajuda! Essa é boa, justo você que não desgrudou dele a vida inteira, vai lhe virar as costas agora?
     -- Quem virou as costas para quem?
     -- Incrível, como você é egoísta, seu irmão está doente, isso não é sobre você.
      -- Não, é tudo sobre aquela mulher, não foi por ela que ele tentou se matar?
      -- Cala boca Laura!
      --
     -- Ele já explicou tudo, foi um acidente, um excesso. O médico só quer falar com você antes de liberá-lo.
     -- Às vezes eu acho que você não viu a mesma coisa que eu. Vai trazer ele para cá e fazer o quê, me por para vigiá-lo o dia inteiro? Porque ele vai fazer de novo.
    -- Santo Deus, como você é exagerada, desde sempre! Foi um acidente, porque é tão difícil de entender? Ande você vai?
     -- Me trocar, você não está com pressa?
   O estrondo, o carro pegando fogo, ele não tinha esse direito, não podia ter feito. O médico era meio bonachão, minha mãe rodando pelo quarto pronta para fazer as malas, com aquela vozinha aguda que ela sempre usava com o André. 
     Ele deitado concordava, sorriso perfeito, sustentava a história do acidente, perfeito só o olhar vidrado denunciava.         
    -- Já falei doutor, o que ele precisa é ir para a casa, ser mimado um pouco. Não é Laura?  
    -- Então Laura? O que você acha posso dar alta para o arruaceiro?                                          
     -- Aí meu filho, você sempre se metendo em confusão... 

Todos ali olhando para ela, a mãe imperiosa, o médico pastelão, o André suplicante. E 
ela toda raiva. Uma semana e tremia ainda da patinada do pneu, do estrondo na 
árvore, do sangue todo, do metal retorcido, do irmão que não acordava. Raiva. Fechou 
o dedo no curativo, queimou a mão para tirá-lo do carro pegando fogo.                               
-- Ele está ótimo.
 
***

AGOSTO, QUARTA-FEIRA