sexta-feira, 23 de setembro de 2011

PROFUSÃO DE NADAS OU EGOCENTRICES



Pois sabe que sempre detestei a primeira pessoa? Estes eus transbordantes, de unhas em frangalhos, batendo no teclado sujo como se cada respiração dependesse de uma palavra martelada ou garranchada no papel. Uma boa digestão evitaria uma infinidade de textos, contos, poemas; no mínimo, o fedor seria menor e, quem sabe? Não precisaríamos admirar essas poças grossas, com seus pedacinhos de arroz, o frango do almoço, boiando num ardido de vinho vagabundo. Não, não daria falta desses textos tão em voga, desses “diários” escancarados, pobres coraçõezinhos, corpos, mentes destroçados, envoltos em fumaça, cheirando a cinzeiro e dias de banho não tomados. Justo eu que bocejava ao desfile de dores, às vísceras, cuidadosamente selecionadas, expostas em galerias, bem postas e emolduradas, que sorria com desdém diante desses canteiros de narcisos... Agora me remexo na cama, em noite de palavras flutuantes, de frases que se desmontam sem deixar rastro; levanto, acostumo os olhos à luz, pego a caneta e tudo se cala. Continuo mesmo assim, quase em tributo ao sono perdido, como eles de olhos fundos, sacrificando o dia seguinte a pretexto de imagens mancas. Qualquer coisa falta, aos meus começos segue um mar de vazios, salgados em semelhança, remexo também nas entranhas, impossível construir, só fragmentos egocêntricos me sobram do espírito. R. disse: por vezes o amor ao outro se confunde com o ódio a si mesmo, R. chora há vinte anos a mesma lágrima. Desespero é abrir a boca para grito nenhum, eles se desgastam com o tempo, perdem volume com a repetição. Desespero é o silêncio de quem não suporta mais ouvir as próprias, sempre mesmas, lamúrias. Como eu tinha raiva desses artistas, escritores autoproclamados a bradar que escrevem para não sufocar, a se esparramar em pieguices, esquecendo que se morre é de fome, de doença, de descaso ou de maldade. Ninguém que fala tanto de si mesmo e, consigo mesmo, merece companhia e para ela era tão bom me rever que jamais me procuraria. Quem sabe agora não imita a mãe? – que não escrevia mas fazia seu drama – E corre para longe de mentirinha, faz de conta que foge, chora a decisão última, inevitável, logo antes de fazer a volta, abrir o portão, guardar o carro, trancar a porta e deitar no lado vazio da cama? Bonito. Queria dissolver isso em uma estória, em uma personagem, fazer presente aquela estradinha de curvas, a atmosfera sagrada do carro, seus ares negros de profecia, enquanto a cidade ficava para trás – as casas, a praça, as luzes, a casa – e o céu resplandecia na serra escura, queria fazer presente o que me passava então, provando a solidão pela primeira vez na solidão de outra e a ela, tão nova, tentando resistir aquela, lágrimas de mãe, maldição. Mas não, me escavo toda e nada brota, no máximo esse vômito emocionado. M. descontraída no café: Se fosse comigo me mataria. O motivo era pouco, quase uma banalidade, a certeza? Cortante. Desejo-lhe outra morte, tomo a xícara, ainda frio, mais que todas uma herança é maldita. Escolher a própria herança, ser fiel traindo: Derrida. M. ignorava a primeira, sabia bem da segunda. Impossível fazer o marido entender, mas nada supera o que não pode ser explicado, é quando falha a língua, quando a palavra é pouca, que se vive o precioso. Batismo é sentença de exílio, todo nome usurpa... E eu que detestava essas besteiras me encho toda com elas, invertia o gênero, me escondia numa terceira pessoa, me dissolvia em outros, transmutava... agora só faíscas estéreis:
  • Certeza: não se dá um passo, ação ou palavra, sem causar um mal a alguém;
  • Às vezes, nossa presença deixa de ser suportável justamente quando chegamos mais perto do outro, descobrimos seus segredos;
  • Pode se enjaular muito tempo na mesma dor, uma vida, sem conseguir resolvê-la nem abandoná-la;
  • Alguns nascem com pouco, respiração fina, pulso fraco, tem de lançar mão de mil artimanhas para o peito seguir batendo e, principalmente, fingir esquecer o quanto isso é inútil.

    Em mim o sopro foi fraco, faltou hálito, nos primeiros ainda se sentia mas, minguante, minguando quase à lassidão. Escrever costumava ser uma lufada de vento numa tarde modorrenta. Pois acredita que eu sempre detestei a primeira pessoa? Estes coitados insones, criaturas tateantes de olhos virados para dentro, rodando sem parar no próprio eixo, martelando ou garranchando sequências de cafonices – e eus, e sentir e amar e sofrer e morrer – num papel sem sorte. E eu que levantei com esperança em uma brecha no espaço, no tempo, uma brecha neste eu que sem dizer nada não se cala, volto para cama sem olhar o relógio, e com a certeza que sabotei mais um dia por nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário