quarta-feira, 2 de março de 2011

REENCONTRO



Ah... Você veio enfim! Há muito que lhe espero, senhora, desde o nosso último encontro!
Reconheci-lhe pelo cheiro... que flores costumavam ser essas? Mas entre, por favor, apareça à luz. Não? Está certo então, fique à vontade... Incomoda-lhe o rádio? Eu há muito já não passo sem um barulho...
Confesso que estou curiosa, como isso funciona sem o sangue à vista, o carro destruído?
Não é muito de conversa não é mesmo? Bom. Nem eu esperava que fosse, mas antes de continuarmos faria a gentileza de uma resposta? Não! Não fique tão cabreira, veja meu sorriso, não vou incomodá-la com as perguntas usuais que, imagino, a senhora escuta nessa hora, muito menos com lamentos!
É uma perguntinha de nada...
Gostaria de saber o porquê da demora, ou, exatamente, o porquê de ter me deixado, só a mim? Todos os outros se foram com a sua amabilíssima companhia!
Admito que não entendi.
Não se lembra? Hoje, justamente hoje, faz trinta anos! Pensei que esse era o motivo da sua chegada. Mas me desculpe, a senhora é, certo, muito ocupada...
Deixe-me ajudá-la então, para mim não é algo a ser relembrado! E como poderia ser? Nunca fui capaz de esquecê-lo.
Naquele dia o rádio estava alto, cantávamos, meus cabelos voavam às janelas abertas. Batia no meu rosto, só que o vento era um afago no calor do dia. Sorria pelos risos do banco de trás, mas a minha alegria vinha dos campos que se estendiam acompanhando à estrada e do sorriso que ele me devotava. O sol, a paisagem a perder de vista, o vento, lhe eram uma moldura admirável...
Ouvi o caminhão se aproximando. Minhas mãos pararam em seus cabelos quando vi o espanto e o medo invadindo seu rosto, não tive tempo de virar para entender o seu motivo, ele já estava em cima de mim.
O que se passou depois a senhora certamente sabe melhor do que eu, só acordei seis dias depois no hospital. Muitos, no começo, quando ainda se atinham a isso, gostavam de lembrar o meu estado então, diziam que eu estava mais morta do que viva... Como que para parabenizar-me pela recuperação. Ah! Como eu os odiava!
É preciso estar muito viva para sentir o que eu sentia!
A senhora já esteve, algum dia, viva? Era preciso que estivesse para me entender realmente, é uma pena, realmente uma pena que, logo a senhora, não saiba o que é isso. Para nós, é claro!
Se soubesse, se ao menos imaginasse...
Eu, por exemplo, não estaria aqui! Nunca teria ficado, presa a essa cadeira e a essa cama! Dependente de quem eu só podia odiar! Por que só de você podia vir o meu consolo! E tantos tentaram, e quanto mais e com mais afinco o faziam, mais eu os desprezava! Eles sofreram também.
É por isso que adio por uns momentos o final deste nosso encontro, pelo qual eu tanto esperei. Quero saber o porquê, bruxa! Se tinha que levá-los, se tinha que levá-lo, então porque não a mim?
Por trinta anos eu lhe procurei, por trinta anos a sua presença foi a única que me seria suportável! Por trinta anos eu me afoguei em fogo enquanto outros me sorriam e me lavavam! E eu implorei!
Não se lembra?! Não me dizes nada?
A senhora nunca demonstrou muita complacência, talvez também, essa seja uma prerrogativa dos vivos. Pois bem, não me encontra mais curada do que quando me deixou, ao inferno às suas razões!
Vamos, faça, me leve logo! É assim que me quer, arrastada às suas vestes? Que seja, é a única coisa que posso fazer.
Anda, bruxa, já cumpri minha pena, e ela foi muito longa, leve-me de uma vez dessa prisão! Pouco me interessa o rosto debaixo desta sombra!
Não ria desgraçada, não me assustará! Liberta-me ou juro, passará a sua eternidade miserável comigo agarrada, como agora, em seu peito...
Quieta. Escute bem, velha, este sussurro, é uma lição que lhe dou ao pé do ouvido: Não concebo asas. Não levo além. Aonde queres ir?! Sois tronco à correnteza, a meu toque criam raízes e, emaranhados à terra, já não passam...
E isto fizeste sem mim... Por isso deixe-me, nada tenho a fazer aqui.
– O que diz? Não, por favor senhora, perdoa minha insubordinação! Há muito o ressentimento amargura tudo que sai de minha boca! Leve-me, leve-me com você! Eu imploro, dê fim a esta agonia, esperei tanto para revê-los, livrar-me deste corpo estragado! Leve-me ao encontro deles!
Solta-me velha! Espanta-me seu hálito ainda quente.

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