terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

PEQUENA FÁBULA OU DICOTOMIA


   
             Um homem corre. Às suas costas, fogo e sangue, corre nauseado pelo cheiro de carne putrefata, os olhos escorrendo pelos que perdeu. À sua frente uma pequena ponte, fraca, decrépita, reúne todas as forças e atravessa, com a pressa seu peso é pluma, a madeira range, mas ele já chegou.
            Respira aliviado, por extenuantes instantes ajoelha, reverencia a nova margem. Leva a fronte à terra bendita, sua cabeça cansada refugia-se no consolo de todo o mal ter ficado para trás. Vive assim um estado glorioso, caminha confiante no novo solo!
            Passa pelos rios, prova dos frutos, deita os olhos nos animais e já os ama! Ama-os profundamente e, como não amá-los? Ali a criança de peito podia brincar sobre a toca da naja!
            Adota-os como seus e, como bom pai, mima-os e os desculpa. Ignora suas pequenas falhas, cerra os olhos para as marcas rasgadas nas árvores. Justifica os dentes manchados do lobo, não é a necessidade que o leva a matar? Ignora o prazer com que cerca a vítima, a lassidão com que a mata, a volúpia com que lambe às garras o sangue.
            E segue neste fechar de olhos, afasta-se dos grandes, toma para si a educação dos filhotes. Em sua caverna, cuida de transmitir a todos as maravilhas daquele lugar, conta-lhes sobre os terrores do outro lado, incita-os a rezar às belezas de sua margem e, quando os sons da caça perturbam o sereno murmúrio das orações, o velho mestre lhes ensina a cantar.
            Eles cantam e cantam cada vez mais alto enquanto os gritos da batalha aumentam e de repente já não cantam, mas gritam! E entre eles é o mestre o mais determinado, eleva-se; os jovens engasgam, tossem e, por fim, só escutam, a rouquidão domina o homem e ele se cala enraivecido. Dirige-se decidido para fora da caverna prometendo conversar com os adultos e restaurar o piedoso silêncio!
            Estanca à porta, os olhos arregalados. Inala fumaça, lacrimeja.
            Por toda parte há corpos mutilados e semidecompostos, alguns sequer foram devorados, de outros apenas pequenos pedaços de carne foram petiscados.
            Vira uma curva e a náusea se liquidifica, limpando os lábios ainda não consegue levantar os olhos para as centenas de pequenos animais empalados – a quais espíritos servem esses tótens macabros? – Seus rostos retorcidos, guardando a última expressão, toda dor, todo o pavor. Reconhece alguns e, com que desespero os encara? Há até pequenos, há até alunos seus.
            Ouve gritos e lágrimas e gargalhadas por toda parte. Vê, no alto de um monte, um grupo cercar uma coelha e seus filhotes, se divertem enquanto a mãe implora, matam lentamente, dolorosamente, cada um dos filhotes, brincam com ela até se fartar e a deixam moribunda, provavelmente levará ainda alguns dias para, finalmente, morrer.
            O velho homem assiste de longe, tenta gritar, chamá-los à razão, mas sua rouquidão impede que o escutem, tenta vencer a enorme distância que os separam, mas quando se aproxima está tudo acabado. Não é capaz de falar com a coelha, quando essa lhe ergue os olhos, não consegue encará-los, sai tropeçando atrás dos algozes, aqueles com quem costumava dividir o leito, amar como filhos...
            Inútil descrever todos os horrores que o acompanharam pelo caminho e seu encontro com os grandes. Basta dizer que, primeiro, riram dele, depois se irritaram e, por fim, levaram-no pelos calabouços, apresentaram-lhe grandes máquinas de dor, explicaram minuciosamente, cientificamente, seu funcionamento, mostraram-lhe até pequenos animais torturados, pequenos animais que, como ele, pareciam estar insatisfeitos com a boa nova ordem das coisas.
            O homem saiu de lá aos pedaços, não acreditava que o paraíso que construiu para se ver livre do terror tinha se tornado ainda mais cruel. Correu para longe dele, em direção à margem do velho abismo que o ligava à sua antiga morada. Correu disposto a renegar, para sempre, as duas margens!
            Chegou à borda, encarou a ponte, antiga ruína, mas pareceu-lhe tão confortável! Sentou-se bem no meio, sentindo a calma, aos poucos, dominá-lo...
            Porém, durou muito pouco, a ponte decrépita começou a ranger, o homem paralisado, ali como estava, abriu os braços e se agarrou às cordas enquanto as tábuas que o sustentavam voavam de seus pés para dentro do abismo.
            Ficou assim tencionado, por sorte, suspenso: uma mão segura à corda presa à margem direita, a outra à esquerda. Qual soltar? Se escolhesse uma poderia escalar até a terra firme, mas como? Não havia para sempre renegado aos extremos sobre o abismo? Não aprendera a duras penas os horrores de ambas as margens?
            Imóvel, sem pensamentos, sem voz, amargurou seu mundo. Império dos pares!
            Mas, que não confunda o leitor as suas lágrimas! Não chorava por uma mudança em uma ou noutra margem – elas não eram sempre as mesmas – e muito menos por uma melhora de seus povos – isso já não estava desacreditado?– Tão pouco ansiava por uma ponte, afinal como viver em uma? Esse impraticável meio termo.
            Não. O que lhe banhava as faces, ele nem o podia dizer, nem o podia saber... Distinção inocente, no fim, não é mesmo um o outro o outro o um?  
            Queria o impossível, desejava o pobre homem livrar-se da terrível dualidade das margens sem ter que abraçar o absurdo: enfrentar o exílio absoluto do abismo.
 

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