terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

MORTO VIVO

             (...)
            Como nos cala.          
            A última vez em que o encontrei foi na festa de Santo Antônio, estava em frente à barraca de cocada. Deu-me um aceno de testa, coisa de nada, um subir e descer de sobrancelha e foi só.
            O acontecido se deu três noites depois. Encontraram o corpo já esverdeado, encharcado d’água; como é costume dos afogados. Isso, pelo menos, é o que se ouvia pela cidade, porque eu mesmo não vi. Fui ao velório. Mas não olhei o morto. Fiquei na borda o tempo todo, com jeito de quem acabou de sair para tomar ar.
            Fiquei ali, muito ocupado em manter essa aparência. Não falei com alma viva, de mim ninguém chegava muito perto mesmo. Passei a vigília inteira repetindo, para todo povo curioso, aquela última cara que Tonho me deu.
            Certo é que em toda roda era de mim que se falava, às vezes eu até ouvia! Tão quieto que eu estava só com a cara de tomar ar, que a gente parava do meu lado e nem se apercebia. Aí vinha a mesma ladainha: “... cresceram grudado um no outro, mais chegado que irmão, e pra tudo acabar deste jeito!” Essa era a hora em que eu me fazia presente, limpava a garganta, tossia, era até gozado de ver: os olhos arregalados do falastrão. Mas é que se eu não fizesse nada pode está certo que começavam a falar dela e, isso, isso me deixava danado da vida.
            Ela não foi ao funeral, nem ao enterro. Culpa daquela gentarada que se ajuntou – teve até briga para ver quem ia levar o caixão – fez certo, era capaz de levar uma sova daquele povo, porque não tinha um infeliz ali que não levantasse o dedo para ela.
            Antônio era chegado em todas aquelas bandas. Por causa dos negócios de rodeio, faz qualquer um ficar famoso por aqui.
            Tinha gente no velório... E a comoção? Uma choradeira danada, e as lembranças? Era estória para mais de metro! Virava e mexia se ouvia umas gargalhadas deslocadas, o velório tomava jeito de festa até que um lá, mais ajuizado, entornasse de novo o choro para o resto se lembrar do que é que se tratava ali e controlar a animação.
            Se bem que a Catarina disse que Tonho, se ainda tivesse gosto, havia de preferir a festa. Nunca vi mulher mais desolada, dava até uma agonia olhar para ela...
            Quando voltei para casa naquele dia, fazia três dias da cerimônia, casamos em dia de Santo Antônio, para dar sorte. Diacho! Depois ainda falaram que foi por maldade, mas só depois, porque não teve UM que faltou na festa!
            Diacho de povo ruim. Não tem tamanho essa língua peçonhenta. Com Catarina ninguém falou mais, era só o indispensável e isso porque a cidade não tinha outro assunto que não fosse ela. Coitada, dava até para ter pena, se bem que com aquele jeito de defunto, a cara sempre molhada, nem eu queria falar com ela!
            Assim dava trela, todo mundo dizia que sofria de remorso, culpa, arrependimento, falavam que por isso não tinha nem conseguido ir ao velório, nem conseguido se despedir do morto; falavam até que foi por ter sentimentos por ele ainda.
            Eu, que nunca fui falante mesmo como o Antônio, nem tão falante nem tão alegre, só fiquei mais quieto e mais sisudo...
            Catarina foi passar uma temporada com a mãe e não voltou. E eu também não chamei de volta, aquela cara mais parecia de outro! Foi, não voltou e estava feito.
            Às vezes tenho é uma raiva do Antônio. Ela era tão bonita e ele nem a tratava direito; a pobre ficava esperando enquanto ele se acabava nas viagens, nas festas; boiadeiro vivia sempre com uma penca de mulher pendurada atrás, e ele se aproveitava, viu?!
            Nesse tempo ela ficava comigo, era uma bênção, porque eu detestava ter que ficar enfurnado naquele quadradinho que era a Tipografia & Papelaria, queria era montar cavalo bravo igual Tonho, viajar... Mas ficávamos lá, proseava um pouco, lia um tanto... A gente ficava feito quando criança: sentado em galho baixo, olhando o Tonho lá em cima, fazendo hora até ele descer.  Era bom.
            Por essa época ele ficou mais presunçoso do que já era, metido de dar raiva. Esbanjava tudo o que ganhava, passou a andar com uma gente endinheirada... Eu e a Cati fomos ficando, eu via que ela sofria, mas o que é que eu podia fazer?
            Nosso primeiro beijo foi quase sem querer, fazia mais de mês que Tonho não aparecia e de repente pareceu que ele não fazia mais falta... Catarina brigou, disse que não era mulher para ser tratada com todo aquele descuidado, ele fez que não ligou para a separação e nós dois fomos nos deixando ficar perto...
            Quando ficou sabendo não disse nada, outros é que disseram que ele até riu de despeito; achei que eu era tonto por ter ficado preocupado com ele, e mais tonto ainda pela tristeza que senti: pelo visto ele por nós já não se interessava.
            Que não era bem assim só foi dar sinal na véspera do casamento: todo mangoaçado ficou gritando na janela de Catarina e, como ela não respondeu, foi gritar na minha...
            Ah, o quanto que não se falou disso no velório: “Fosse melhor se ele tivesse falado com o pobre, não eram amigos de tanto tempo?” Mas não falei. Ele que tinha tudo, vinha reclamar o meu único?!
            Disseram que morreu de desgosto, mentira, morreu foi de vingança! E eta vingancinha bem feita, viu? O que é que se pode fazer contra um morto? Ele vai e morre e você fica só com as suas caraminholas, fica sem poder responder, fica sem nada. Sem Antônio, sem Catarina... Só me sobrou a velha Tipografia & Papelaria do meu pai e a raiva desta gente fofoqueira, que só tem divertimento no que é ruim, só tem assunto no que é miséria.
            Ah, se ninguém tivesse língua. Podiam ter ficado quietos. Aí então podia ter sido acidente, fatalidade... Aí então Catarina podia ter ficado.
            Eu teria sabido calar este demoniozinho no meu ouvido se não tivesse um todo mundo a lhe fazer coro. Mas não, e ele continua, há quanto tempo que não o tenho só como companhia? Muito, já vai longe que tudo foi, só que nessa miséria de lugar, que nada acontece, essa ainda é uma estória boa de se contar, garanto que a maioria aqui já ouviu falar!
            Que seja, foi por isso que não tive mais nenhum amigo, nem frequentei a casa de ninguém e então é que, com a idade avançando, me nasceu esta preocupação: E quando eu morresse, como é que ia ser?
            Fiquei assim pensando, refletindo... Que beleza de velório foi aquele! E no meu, como é que ia ser? Assim este projeto foi criando vida, por fim me decidi por fazer logo de uma vez, eu mesmo – porque não há de haver mais ninguém – o meu próprio velório.
            Confesso que não pensei muito nos detalhes, como eu seria, por exemplo, ao mesmo tempo, quem morre e quem sente? Mas, confiei que na hora tudo se arranja. Cuidei mesmo foi com as velas, com a coroa de flores e, principalmente, com o caixão! Imaginem, economizei oito meses, que passei praticamente a pão e água, e ainda tive que vender a prensa da tipografia – que agora é só papelaria – para comprar este caixão, que faz vista suficiente, uma beleza.
            Então, caros amigos, ou melhor, ilustres desconhecidos, aqui estamos. Contei-lhes essa estória, que é a minha, para que substituísse as palavras do padre. O que bem faz sentido já que nunca me importei com a outra vida, tendo vivido mesmo remoendo a ruína desta. Chamei todos aqui – e não se preocupem, o combinado se mantém – foi, como já o disse, pela falta de pessoas próximas para sentir esse momento e carregar o caixão, o que também é muito importante. Aos poucos que conseguiram se aproximar de mim nestes anos afastou a estranheza do projeto.
            À única que importava, mandei também convite que, obviamente, foi dispensado. Talvez pelos mesmos motivos afetivos que a afastaram desta sala antes...
            Besteira. Mais provável que minha lembrança tenha se perdido na lembrança do outro. Eu, o legítimo marido, sofrendo aqui as nervuras de um amante.
            Mas deixa, que esse discurso se prolonga por demais e eu não quero abusar de suas lágrimas de crocodilo.
            Deito aqui o meu corpo, finalmente, nesta mesma sala que há tempos já velou minha alma e, tenho certeza, morro. Fechem agora o caixão e enterrem. Não necessito de mais flores no final. Só, vos imploro, por misericórdia: não digam nada.

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