quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Cidinha dos Santos Jesus.



Cidinha dos Santos Jesus.

Entornou de leve ‘umazinha’ no café, para acalmar o estômago. A noite tinha sido. Averiguou sem muito interesse o corpo, um joelho ralado, uma dorzinha na boceta. A vizinha gritava com a penca de meninos, a outra cantava, o outro ouvia jornal. A viela já ardendo de gente. Puxou a tábua emperrada da janela, abafando um pouco a manhã.

Deu um pisão no homem. Aquilo ia dar um B.O danado, tinha desfilado com a praga por tudo que é canto, daqui a pouquinho a mulher dele aparecia para lhe encher os ouvidos. Deu de ombros: ela que viesse, e trouxesse junto as mau comidas da igreja tudo.

O pisão funcionou. Quando ele saiu – rápido e quieto – se esticou aliviada, o colchão era pequeno de mais para dividir.

Cidinha dos Santos Jesus.

– Documento.
– ‘Ixi’, não é que eu perdi?
– Profissão?
– Catadora.
– Idade?
– 42
– Tem passagem?
– Ah, umas coisas besta
– Puta que pariu, cadela favelada.

Disfarçou o riso em tosse, que farda não tem muito senso de humor. Deu uma espiada pelo ombro, a recatada se matando de tanto chorar. A cara arranhada, segurando um trapo como saia, achou bem feito. Riu alto, a sonsa ficou pior pela roupa rasgada do que pelos sopapos.
– Já está acostumada em levar na cara, não sei por que o drama!


Cidinha dos Santos Jesus.

– Aquela ali não presta, não.
– Uma porca, vagabunda.
– Como alguém tem coragem de se sair com ela, olha a sujeira
– Sabe como é homem, né?
– ‘Aff’, nem dente ela tem.
– Parece um gamba, vive encharcada.
– Vão tudo se foder suas filhas da puta arrombada.

Cidinha dos Santos Jesus.

– A senhora tem tomado seus remédios?
– Não precisa chamar de senhora não.
– Tá bem, posso marcar a consulta?
– Meus horários, são malucos, fica difícil, sabe como é que é, né?
– Mas, a senhora precisa se cuidar. Você tem alguma queixa?
Riu. Ah, essas novinhas.
– Pode marcar, então. Eu vejo se consigo ir, bem.

Cidinha dos Santos Jesus.

– Oh, Cidinha. A pinga tava forte, em? Nem para aparecer no velório!
– Cuida da tua vida, Manoel.
– É por isso que não sustento filho dos outros. A gente cria como se fosse nosso e depois é só ingratidão.
– Tu não sustenta nem os seus, malandro!
O bar explodiu em risadas, Cidinha deu uma escarrada e continuou puxando o carro. Ingratidão? Enquanto virava o papelão no depósito, só sofria não ter se vingado o suficiente.

Cidinha dos Santos Jesus.

– Presente.
– Menina cade seu caderno?
– Vou ter que falar com a sua mãe Cidinha, você não faz nenhuma das suas lições.
– Eu fiz sim, professora.
– Então, cadê?
– Diz para a sua mãe vir amanhã falar comigo.
– Não vai dar não, dona. Ela está doente.
– Tem o que?
– Está no hospital.
– Perde tempo não, Édina. Essa aí é sonsa. Não tem jeito.

Cidinha dos Santos Jesus.

Virou mais um copo, que já quase amanhecia e essa hora é a do perigo. Quem a encontra com o céu roxeando até se surpreende. Não vê uma boca escancarada, em deboche ou em riso. Na verdade, a pessoa até se assusta.

Porque, da língua ferina, do short enfiado na bunda, da pele preta, das cicatrizes brancas e das canelas ressecadas, toda gente já é acostumada.

Mas, nessa hora, Cidinha trava os dentes. A favelada, quieta; a barraqueira, quieta; a puta, quieta; a lixeira, quieta, a dadeira, quieta.

Ao amanhecer, tudo o que lhe sobrou para ser lhe parece tão pouco que é nada. Só a raiva fica. Entorna mais um copo. Rato na gaiola armadilha, cada caminho interditado, até chegar na ponta do labirinto, ao minúsculo queijo mofado. O que lhe resta, refastelar-se nele e guinchar bem alto.

Mas na aurora, não. Não enquanto o sol abre todo possível no céu. Então é fúria calada, sentida de uma voz que poderia ter tido e lhe foi roubada.

Ela fica tão grande, tão grande que ninguém mais consegue lhe enxergar, dá medo.


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