Cidinha dos Santos
Jesus.
Entornou de leve
‘umazinha’ no café, para acalmar o estômago. A noite tinha
sido. Averiguou sem muito interesse o corpo, um joelho ralado, uma
dorzinha na boceta. A vizinha gritava com a penca de meninos, a outra
cantava, o outro ouvia jornal. A viela já ardendo de gente. Puxou a
tábua emperrada da janela, abafando um pouco a manhã.
Deu um pisão no
homem. Aquilo ia dar um B.O danado, tinha desfilado com a praga por
tudo que é canto, daqui a pouquinho a mulher dele aparecia para lhe
encher os ouvidos. Deu de ombros: ela que viesse, e trouxesse junto
as mau comidas da igreja tudo.
O pisão funcionou.
Quando ele saiu – rápido e quieto – se esticou aliviada, o
colchão era pequeno de mais para dividir.
Cidinha dos Santos
Jesus.
– Documento.
– ‘Ixi’, não
é que eu perdi?
– Profissão?
– Catadora.
– Idade?
– 42
– Tem passagem?
– Ah, umas coisas
besta
– Puta que pariu,
cadela favelada.
Disfarçou o riso em
tosse, que farda não tem muito senso de humor. Deu uma espiada pelo
ombro, a recatada se matando de tanto chorar. A cara arranhada,
segurando um trapo como saia, achou bem feito. Riu alto, a sonsa
ficou pior pela roupa rasgada do que pelos sopapos.
– Já está
acostumada em levar na cara, não sei por que o drama!
Cidinha dos Santos
Jesus.
– Aquela ali não
presta, não.
– Uma porca,
vagabunda.
– Como alguém tem
coragem de se sair com ela, olha a sujeira
– Sabe como é
homem, né?
– ‘Aff’, nem
dente ela tem.
– Parece um gamba,
vive encharcada.
– Vão tudo se
foder suas filhas da puta arrombada.
Cidinha dos Santos
Jesus.
– A senhora tem
tomado seus remédios?
– Não precisa
chamar de senhora não.
– Tá bem, posso
marcar a consulta?
– Meus horários,
são malucos, fica difícil, sabe como é que é, né?
– Mas, a senhora
precisa se cuidar. Você tem alguma queixa?
Riu. Ah, essas
novinhas.
– Pode marcar,
então. Eu vejo se consigo ir, bem.
Cidinha dos Santos
Jesus.
– Oh, Cidinha. A
pinga tava forte, em? Nem para aparecer no velório!
– Cuida da tua
vida, Manoel.
– É por isso que
não sustento filho dos outros. A gente cria como se fosse nosso e
depois é só ingratidão.
– Tu não sustenta
nem os seus, malandro!
O bar explodiu em
risadas, Cidinha deu uma escarrada e continuou puxando o carro.
Ingratidão? Enquanto virava o papelão no depósito, só sofria não
ter se vingado o suficiente.
Cidinha dos Santos
Jesus.
– Presente.
– Menina cade seu
caderno?
–
– Vou ter que
falar com a sua mãe Cidinha, você não faz nenhuma das suas lições.
– Eu fiz sim,
professora.
– Então, cadê?
–
– Diz para a sua
mãe vir amanhã falar comigo.
– Não vai dar
não, dona. Ela está doente.
– Tem o que?
– Está no
hospital.
– Perde tempo não,
Édina. Essa aí é sonsa. Não tem jeito.
Cidinha dos Santos
Jesus.
Virou mais um copo,
que já quase amanhecia e essa hora é a do perigo. Quem a encontra
com o céu roxeando até se surpreende. Não vê uma boca
escancarada, em deboche ou em riso. Na verdade, a pessoa até se
assusta.
Porque, da língua
ferina, do short enfiado na bunda, da pele preta, das cicatrizes
brancas e das canelas ressecadas, toda gente já é acostumada.
Mas, nessa hora,
Cidinha trava os dentes. A favelada, quieta; a barraqueira, quieta; a
puta, quieta; a lixeira, quieta, a dadeira, quieta.
Ao amanhecer, tudo o
que lhe sobrou para ser lhe parece tão pouco que é nada. Só a
raiva fica. Entorna mais um copo. Rato na gaiola armadilha, cada
caminho interditado, até chegar na ponta do labirinto, ao minúsculo
queijo mofado. O que lhe resta, refastelar-se nele e guinchar bem
alto.
Mas na aurora, não.
Não enquanto o sol abre todo possível no céu. Então é fúria
calada, sentida de uma voz que poderia ter tido e lhe foi roubada.
Ela fica tão
grande, tão grande que ninguém mais consegue lhe enxergar, dá
medo.
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